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Papagaio renasce como Espaço Livre, já em novembro

A antiga taberna vai reabrir com samba, fado e ioga. O senhor Zé e a dona Maria estão convidados para a inauguração do novo capítulo.

Há lugares que transcendem a sua função e se colam à geografia emocional de uma cidade. O Papagaio foi um deles. Mais do que uma taberna, foi o ponto de encontro do Barreiro consigo mesmo. Até ao dia em que o senhor Zé adoeceu. As portas fecharam em 2023 e o silêncio na Almirante Reis tornou-se ensurdecedor.

Para pôr fim ao luto coletivo, o Papagaio vai renascer com outro nome. Chama-se Espaço Livre e abre a 1 de novembro. Para já sem sandes de torresmo, de sexta a domingo, mas com eventos especiais pelo meio. 

“Para mim, o essencial era manter a sensação de casa”, explica Lia Carvalho, a lisboeta de 28 anos que, há ano e meio, chegou ao Barreiro e a quem o senhor Zé e a dona Maria passaram o testemunho. “As portas, o balcão, o sino, os candeeiros, tudo isto faz parte da memória afetiva deste sítio. Tudo isto fica. Se mexesse aqui, perderia a essência que torna este lugar único.” O esqueleto é o mesmo, a alma é que muda.

Diretos ao ponto, “a entrada não é para mexer” e o sino que ecoa o mesmo som metálico e familiar que, durante mais de quatro décadas, anunciou o fim de dias de trabalho e o início de noites lendárias, é para ficar. Até as estantes por detrás do balcão, outrora repletas de copos, canecas, garrafas e branco velho, mantêm o posto original, agora vestidas de azul – a cor do novo Papagaio e, sem que isso tenha pesado, a do clube do antigo proprietário.

O candeeiro de bronze continua a lançar os seus reflexos sobre as paredes que tudo viram e tudo guardam.

Para materializar esta passagem de testemunho, Lia idealizou um mural de memórias vivas. “Tenho pavor de me esquecer das coisas e das pessoas. Então, queria marcar fisicamente quem passa por aqui.” A ideia é simples: criar um mural na parede com fotografias Polaroids e assinaturas. “Vamos ter fotos para artistas e clientes. Quero que assinem, que deixem a sua marca, como a dizer ‘eu toquei aqui.'”

O gesto mais simbólico está reservado aos antecessores. “Se o senhor Zé e a dona Maria aparecerem, vamos tirar uma fotografia e assinar o espaço, deixar uma impressão numa história nova, que também é deles”.

A mudança de nome, explica-nos “a nova ‘senhor Zé'”, não foi questão no momento do trespasse. “Não se trata de apagar o passado, mas de dar espaço a novas histórias.” É a sua forma de tecer o fio da história, ligando a primeira assinatura do passado ao que está para vir.

Da insónia ao peso das asas

“Com medo da ponte e do trânsito, sei lá”, Lia chegou ao Barreiro como tantos outros jovens lisboetas, “empurrada pelo mercado imobiliário.” A frase é dita com a franqueza de quem já superou os próprios preconceitos. “Para mim, vir viver para o Barreiro era o terror”, admite, sem rodeios.

Numa noite de insónia, esta recém chegada empreendedora da noite do Barreiro Velho pintou uma casinha azul com três portas. “Não acredito lá muito no universo, mas foi a coisa mais estranha que aconteceu”, relata, ainda surpreendida. Quando viu o anúncio do Papagaio, reconheceu imediatamente o seu desenho. “Era a minha casinha. Exatamente igual. Não houve hesitação. Soube, de coração e estômago, que era aqui.”

 
 
 
 
 
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Agora, os dedos percorrem o balcão onde tantas vidas se cruzaram. “Percebo perfeitamente o peso do que estou a assumir. Isto não é um negócio, é uma herança.”
O antigo terror deu lugar a uma certeza. E a prova veio com o apagão de abril passado, que deixou a Península Ibérica às escuras durante grande parte dia, sem eletricidade e comunicações.

“Pra mim foi maravilhoso”, confessa. “Levantei as mãos do computador, fui beber uma cerveja e comer aperitivos com as minhas vizinhas para o pátio. Sentámo-nos na rua a ver as pessoas e a conversar sobre coisas banais”.

Sem compreender que o convívio de gerações e gerações de barreirenses se semeia à porta de tabernas como o Papagaio, foi nesse caos compartilhado que a lisboeta descobriu a cidade. “Elas tinham um rádio a pilhas, tecnologia que eu não tinha. De repente, éramos 10 pessoas com bancos de campismo e não há nada que pague isso.”

Esta rede de cumplicidades tornou-se a sua nova moeda. “A maior lição foi perceber que o preconceito era meu. Elas sabem quando chego a casa, sabem se estou bem. No outro dia, uma vizinha veio pedir para lhe fazer ‘uns totózinhos’ no cabelo. Isto é impagável para uma pessoa que sempre viveu em Lisboa, em prédios de oito andares, onde não fazia ideia de quem morava ao lado”, confessa.

“Para mim, não faz sentido ir para um sítio grande onde as pessoas não se conhecem. Vou dar música a essa vizinha. Vou dizer-lhe: ‘Vamos lá, está ali um senhor a tocar concertina, vamos beber um vinho.'”

Lia Carvalho vive em várias frentes. De dia é jurista com mestrado em Direito Penal. Nos tempos livres é bailarina. E no meio disso tudo, gere a logística caótica da cultura como produtora de eventos e diretora de operações a tempo inteiro numa empresa. “São vidas complementares. O Direito deu-me estrutura, a dança deu-me alma e a produção mostrou-me a lacuna”, argumenta. “Vejo de dentro do sistema como a arte é precária. Todos os orçamentos são muito baixos, não se paga aos artistas. E isso revoltou-me.”

É desta revolta íntima, alimentada pela sua tripla experiência, que nasce o compromisso do Espaço Livre. “Desde que estou na produção criei esta ideologia: quero empregar artistas, dar-lhes uma oportunidade”, afirma. “

Há muitos bons artistas portugueses que estão às escuras, na casinha deles, a tocar sozinhos para o YouTube, e ninguém quer saber. Quero ser a ponte que o Direito não foi, usar a minha visão estratégica de produtora para criar um palco que a bailarina em mim sabe que é necessário.”

A sua visão de liberdade tem ainda um compromisso de género. “Tenho algo muito claro pra mim, enquanto mulher: quero contribuir de alguma forma.” O seu plano é uma intervenção ativa no ecossistema noturno. “Quero contratar mulheres pra cantar, para ser DJs, para ser bartenders ou técnicas de som.”

Reconhece que pode ser visto como radical, mas a convicção é firme. “Para mim, faz sentido equilibrar um pouco este mundo da noite. Há ótimas mulheres a fazer muita coisa, como há ótimos homens. Mas no meu espaço, vou sempre tentar dar mais espaço às mulheres.”

A sua visão de arte é deliberadamente ampla e inclusiva. “Não é só música ou dança. É transformar ideias em experiências. É qualquer gesto que eleve o quotidiano.” E é essa filosofia que ganha vida na programação, uma curadoria que é, ela própria, um ato de cuidado.

Um ecossistema para criadores

A abrir o espaço, a 1 de novembro, não está agendado um concerto, mas uma aula de ioga. “Um começo em paz, com nova energia”. O fado de Raquel Maria, na terça-feira seguinte, será “um pedaço da minha Alfama natal para esta minha nova casa barreirense”.

Aos sábados, a roda de samba organizada pelo companheiro Diego trará “a nossa celebração semanal da diversidade”. E as sextas de happy hour, entre as 19 horas e as 22 horas, resgatam o ritual secular do encontro. “É para desligar o stress e ligar o espírito do fim de semana.”

Cada evento é um ramo da mesma árvore. A dança, o teatro, os flash mobs que planeia, o Salão Livre de danças de salão onde um workshop desbloqueia a pista para todos. Não se trata de preencher um calendário, mas de semear um ecossistema no solo fértil da herança que recebeu.

A longo prazo, o plano é ainda mais ambicioso. “Se houver bandas que não tenham sítio para ensaiar, obviamente que o espaço está aberto. E se passar pela minha influência e aprovação, têm direito a fazer um espetáculo uma vez por semana.” Esta não é uma mera política de agendamento, mas um compromisso ativo. “Quero dar oportunidades.”

A mesma lógica aplica-se a outras áreas. “Se fizer um workshop de coquetéis e perceber que há bebidas muito bem conseguidas, quero vendê-las com o nome da pessoa que as fez.”

O objetivo é criar um ecossistema onde os criadores, sejam músicos, barmans ou artistas visuais, possam não apenas mostrar o seu trabalho, mas construir uma carreira. No fundo, é cultivar um solo onde um criador não é apenas pago, mas celebrado. Onde o nome do autor brilha no copo de um cocktail, uma banda tem direito a ensaio e concerto, e a vizinha dos “totózinhos” é a primeira convidada para a festa. É o renascer da Almirante Reis, já no próximo mês de novembro. 

Carregue na galeria para rever algumas imagens do Papagaio, eternizadas na redes sociais.

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