A história de Marta Gonçalves vai muito além da mudança de morada do salão Peruca Chic, há uma semana. Do Centro Comercial Alfredo da Silva para a antiga padaria da Rua Serpa Pinto, junto à igreja de Santa Cruz, as tesouras da cabeleireira de Vendas Novas já passaram por um quartel do exército, pelo primeiro ano do curso de Direito, por palcos internacionais de Londres a Nova Iorque e, agora, pelo Barreiro Velho, onde cada diagnóstico “personalizado e gratuito” antecipa o corte, hidratação ou cor que se seguem.
Aos 43 anos, a alentejana lembra-se com precisão militar do momento em que decidiu trocar a farda pelas tesouras. “Estava no exército e resolvi que, quando saísse da tropa, queria ser cabeleireira.” A frase, seca e certeira como um bom corte, esconde uma transformação profunda que a trouxe até ao Barreiro, onde acaba de inaugurar a nova fase do salão.
“Reprimida por várias outras experiências”, a vocação nasceu cedo, ainda em Vendas Novas. “Em casa, as minhas quatro irmãs eram cobaias de cortes, mas as minhas bonecas também. Desde pequena até colecionava cortes de cabelo das revistas.” Mas o percurso profissional começou noutro lugar. “Estava a tirar Direito, no primeiro ano, quando descobri que uma amiga ia alistar-se. E disse, ‘está bem, eu vou contigo’.”
Foi durante o serviço militar que o chamamento se tornou impossível de ignorar. “Tirei o curso de cabeleireiro em pós-laboral. Ia fardada para as aulas. A professora achava muita piada – dizia que nunca tinha tido uma aluna da tropa.” O quartel tornou-se o seu primeiro estúdio. “O senhor Lopes, cabeleireiro de Montemor, ensinou-me cortes de homem e usava os meus camaradas como cobaias.”
Do quartel para o Barreiro
Em 2010, trocou o Alentejo pelo Barreiro. “Vim por amor e acabei por ficar.” Sozinha, mas determinada, construiu uma carreira de 23 anos, que começou nos salões locais, mas rapidamente transcendeu as quatro paredes de qualquer espaço convencional.
O currículo de Marta é uma viagem pelos bastidores da imagem portuguesa. “Já trabalhei na Moda Lisboa várias vezes, com estilistas que todos conhecem bem”, conta, referindo-se à sua passagem pela área de hair styling. O seu portfólio abrange “sessões fotográficas e de moda, cinema, televisão, entre muitas outras coisas” – experiências que moldaram a sua visão sobre o ofício. “O cabelo é expressão, é linguagem, é personagem. E isso fascina-me”, revela, explicando como descobriu que cada cabeleira conta uma história.
A busca pelo conhecimento tornou-se uma segunda natureza. “Tenho um currículo vasto e muita formação, nacional e internacional”, afirma, referindo-se a um percurso formativo que a levou aos quatro cantos do mundo. Entre as experiências mais marcantes, destaca “uma formação em Londres com a Tony and Guy, que adorei” e outra “da Redken, em Nova Iorque”. Foi mais a sul, numa formação em Miami, que ouviu “a lição” que a motiva diariamente.
“O formador ensinou-me que as mulheres com mais atitude usam cortes mais curtos. Isto porque, muitas vezes, o que pode parecer defeito é o que nos marca pela diferença e nos torna únicas.”
A filosofia que celebra a individualidade “em vez de a camuflar” tornou-se num dos pilares da sua abordagem – uma mistura perfeita entre a técnica apurada nas capitais mundiais da moda e a sabedoria de quem compreende que a verdadeira beleza reside na autenticidade.
Nova reviravolta, a mesma alma
A recente mudança do salão para a antiga padaria da Rua Serpa Pinto, explica, foi necessária. “No centro comercial, quiseram aumentar a renda para um valor muito alto e preferi mudar-me para a rua”, conta Marta. “Não sabia, mas parece que toda a gente conhecia esta padaria. Aproveitei os azulejos e tudo o que consegui do espaço antigo para fazer esse conceito e porque também sinto que o Barreiro Velho tem muito potencial. Mudamos de espaço, mas mantemos o mesmo compromisso.”
O espaço foi pensado ao pormenor: “há plantas, arte nas paredes e boa música. Cada detalhe tem alma.” A localização tem-se revelado estratégica. “Esta é uma rua muito movimentada porque é a ligação das pessoas ao rio”
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Quando questionada sobre o que a motiva após 23 anos de profissão, a resposta é imediata: “Gosto muito do que faço, dá-me satisfação.” Essa satisfação transparece quando descreve momentos especiais: “Ontem atendi uma cliente que queria mudar radicalmente. Falei com ela, percebi o que queria, fiz o diagnóstico e, quando saímos, estávamos as duas a rir com o resultado final. É isso que me move — ver as pessoas transformarem-se e sentirem-se confiantes.”
A sua veia artística, que sempre a acompanhou, manifesta-se também na música: “Sou guitarrista e sei tocar acordeão. E quando tinha 19 anos pertenci a uma banda.” Esta multidimensionalidade artística enriquece a sua visão do trabalho capilar: “O cabelo não é um acessório, é personagem, é expressão pura. Faço penteados muito diferente, mas não uso rolos, nem faço ondulações.”
Diagnósticos gratuitos
Esta abordagem atrai pessoas de todo o País. “Tenho um cliente da Ericeira que vem cá de propósito. Trabalho com muita cor, muitos mullets, muitos cortes assimétricos.” Apesar da vertente mais ousada, Marta mantém um equilíbrio: “claro que também tenho a vertente comercial, mas a grande maioria do meu público são pessoas que gostam de sair fora da caixa.”
O seu grande orgulho, no entanto, não está nas técnicas complexas ou nas cores ousadas, mas num gesto simples, que antecede qualquer transformação. “Antes de qualquer decisão, faço sempre um diagnóstico gratuito. É a base de tudo.” Este ritual, que não tem “um timing preciso, pode ser feito em 10 minutos ou depender do tempo que estivermos a falar”, é muito mais do que analisar o cabelo.
“O diagnóstico é ideal para todas as pessoas, tanto para retirar dúvidas, como para ver a linha do rosto e o estilo de vestir da pessoa, a personalidade.” Marta explica que “pessoas com mais atitude geralmente gostam de coisas diferentes. Pessoas mais clássicas gostam de coisas mais formais, de não dar nas vistas.”
O processo abrange um todo, desde a saúde capilar ao couro cabeludo ou densidade do fio, até à parte estética. Porque tem que enquadrar a personalidade de cada um.
No final, Marta reflete sobre o percurso que a trouxe até aqui. “Às vezes paro e penso: ‘Nora, de Vendas Novas para o mundo, e o mundo trouxe-me para o Barreiro’.” E conclui, com a sabedoria de quem encontrou o seu lugar: “A tropa ensinou-me rigor, a moda ensinou-me criatividade, e o Barreiro deu-me casa. Agora é aqui que continuo a fazer o que amo: transformar pessoas e contar histórias com cabelo.”
Na antiga padaria da Serpa Pinto, entre azulejos com história e tesouras que já percorreram o mundo, Marta Gonçalves prova que os melhores cortes não são os que seguem a tendência, mas os que revelam, fio a fio, a pessoa única que sempre esteve lá — tal como ela própria descobriu ao trocar a farda militar pela liberdade criativa das tesouras.
Carregue na galeria e espreite a transformação do recém inaugurado Peruca Chic.

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