Assim que a NiB entra no Sarilho – Pão e Vinho, a nova padaria do Mercado Municipal 1.º de Maio, Xavi avisa: “acabaram de me levar quase tudo o que temos. Ia mesmo agora começar a repor os produtos”. O que se segue é mais do mesmo. Pessoas a entrar, com grande curiosidade, boas recomendações e muita vontade de experimentar tudo o que por lá se faz — ou não fosse este um dos spots do momento no Barreiro.
O cheiro a pão acabado de cozer — sob olhar atento do chef Nuno Pontes, de 34 anos — invade o espaço e parece atrai os barreirenses (e não só), que rapidamente esgotam os rissóis de peixe e carne, fritos de forma contínua. Ao lado, estão as famosas enxovalhadas do Barreiro (3€), servidas em fatias ou em pedaços numa taça com uma placa sugestiva: “Prova-me”.
“A enxovalhada é um bolo tradicional do Barreiro. Enquanto em Lisboa se faziam doces mais ricos, com muitos ovos, açúcar, manteiga, aqui não havia nada disso. Por outro lado, tínhamos cereais. Pobres com imaginação, mas com vontade de comer. Portanto, aproveitavam a massa do pão, já com leveduras naturais e que utilizavam como base, juntavam ovos inteiros e banha de porco em vez de manteiga, temperavam com canela, especiarias e um um de açúcar, que tinham em casa ou iam buscar a algum vizinho. Depois batiam tudo e a massa ia ao forno. Foi assim que nasceu a enxovalhada, uma massa de pão temperada ou uma espécie de bolo ao engano”, conta Xavi, antes de ser interrompido pela entrada de mais uma cliente.
A tradição
Nesse momento, Tiago Santos, de 37 anos, outro dos chefs do Voraz, assume a conversa, explicando o conceito deste novo espaço, que abriu no passado dia 14 de maio. “Quisemos seguir a linha das antigas padarias, que tinham os pães, doces e salgados do dia disponíveis até acabar o stock. É tudo feito aqui, não há produtos congelados”. Já o café segue a mesma premissa. “Somos nós que o torramos, com um torrador próprio, para garantir que está sempre fresco e o de cafeteira, como existia, antigamente, nas mercearias”.
No que diz respeito ao pão, Tiago explica que a ideia passou por “voltar atrás no tempo, baseando-nos no conhecimento científico. Hoje em dia, o pão é um grande veneno, mas os nossos são feitos à base de farinhas de moleiro, moídas em mós de pedra, com cereais portugueses tradicionais. Os nossos pães têm apenas um quarto do índice glicémico do pão convencional, não têm químicos e a técnica que usamos maximiza a sua longevidade. No fundo, é aquilo a que os nossos avós se habituaram: fazer pão uma vez, para durar a semana inteira”.
No caso das compotas (sazonais) — com sabores como cebola roxa com vinho do Porto e alecrim, de ananás com caril, de tomate, abóbora, malagueta e tomate cherry — e confecionadas com fruta vendida na banca da Milena, também no Mercado, o processo é semelhante. “Quando deixamos uma compota aberta no frigorífico, ela acaba, muitas vezes, por ganhar bolor. Estas que temos em exposição estão abertas há uma semana e continuam intactas. Daí utilizarmos as regras dos nossos antepassados, porque não tinham meios de conservação e faziam produtos que tinham de durar. Hoje vivemos numa sociedade tão descartável que o que é bom é comprar pães e produtos que se estragam rapidamente, para amanhã ser necessário comprar outra vez. É por isso que apostamos nos processos tradicionais”.
E se, por esta altura, está a perguntar que pães poderá encontrar na Sarilho, a resposta é simples: “os pães portugueses que estão, atualmente, desaparecidos. Temos o pão de cornos, tradicional da Vagueira, da zona de Vagos. Era feito em alturas de festa, pelas pessoas mais ricas, para oferecer à comunidade. Como toda a gente se juntava à porta da igreja para ver os casamentos, mandava-se as padeiras fazer um pão enriquecido com azeite e centeio — que era o mais caro — e oferecia-se”, conta.
“Também vendemos pão da Beira Interior; a bica de azeite, que parece uma focaccia; o pão de Mafra que é, muitas vezes, mal feito; o pão da Dona Henriqueta, de Sarilhos Pequenos, que já morreu e fazia uma versão de pão alentejano, da qual nós temos a receita. O nosso propósito é contar histórias com pão, porque vivemos disto, da matriz da nossa cultura tradicional de panificação. No final do dia, queremos que a nossa padaria seja diferente das outras”. Mas a História não fica por aqui.
“Os nossos biscoitos lembram a tradição dos biscoitos do Barreiro, ligados à fábrica, de onde vem o candeeiro que está aqui pendurado e que simboliza a ligação da terra à padaria e à panificação”.
O projeto e a missão
Depois do sucesso do Voraz, também instalado no Mercado, os chefs decidiram apostar na padaria Sarilho. A explicação é simples. “Sempre foi um sonho e tivemos agora essa possibilidade. Quisemos avançar para algo importante na estruturação do nosso negócio. Algo fixo, um produto muito transversal”. A missão é contrariar o método de fabrico de pão mais utilizado atualmente. “Hoje em dia, o pão é pré-cozido e industrial e leva ingredientes prejudiciais à saúde para aumentar a rentabilidade e reduzir o peso. Nós não fazemos isso”.
Esta abertura surge ainda antes de um novo desafio, já anunciado. “Ainda vamos arrancar com o restaurante do Convento da Madre de Deus da Verderena, com o qual queremos alcançar uma estrela Michelin. No entanto, era importante termos um espaço na cidade, como a Sarilho, para chegar a outra parte da população, que reconhecesse a qualidade do nosso trabalho. Um sítio ao qual todos possam vir. Por isso é que optámos pela coisa mais mundana que conhecemos: o pão”.
A verdade é que esta novidade já causou impacto. “Temos o testemunho de uma senhora com intolerância celíaca, que tinha desistido de comer pão porque não conseguia digeri-lo. Comprou um pão nosso para testar e agora vem cá sempre. E assim vamos combatendo a grande desinformação que existe acerca do pão. O nosso tem muito mais proteína, mais fibra. As pessoas ficam mais saciadas com duas fatias do que com um pão inteiro industrial”.
Origem do nome
Quanto ao nome — Sarilho – Pão e Vinho — Tiago explica: “O sarilho é o mecanismo que faz com que as pás dos moinhos girem. É um sem-fim espiralado. Sem ele, não há moinhos. É daí que vem a expressão ‘estás metido num sarilho’, porque nunca tem fim. Além disso, sou natural de Sarilhos Pequenos e o nome da freguesia vem de um moinho de maré, que dividia Sarilhos Pequenos e Sarilhos Grandes. Sendo uma pessoa tão ligada ao Tejo e ao pão e, existindo esta expressão engraçada, achámos que fazia todo o sentido”.
A parte do “Vinho” está relacionada com a experiência de Tiago como enólogo. “Vem dos projetos que vou fazendo ao longo do País e dos pedidos dos clientes do Voraz, que querem comprar o nosso vinho. Como, no restaurante, o vinho tem uma taxa de serviço, decidimos criar, aqui, uma experiência de garrafeira”, conclui.
O espaço está aberto de terça-feira a sábado, entre as 9 e as 21 horas.
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